Rebeca Nadine de Araújo Paiva

OS NÓS DE PAULINO: REPRESENTAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES DO PASSADO NA CONTEMPORANEIDADE

  

A partir da disciplina Seminário de História Moderna e Contemporânea I, ofertada pelo Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no semestre experimental 2020.5, tivemos acesso à discussão sobre as imagens produzidas sobre pessoas negras. Elencamos aqui como teórico basilar para essa trajetória o pesquisador Achille Mbembe, o qual explica como o período moderno fez surgir uma ciência colonial e, a partir dela, as representações dos povos fora da Europa foram produzidas em uma perspectiva negativa, criando uma primeira escrita sobre a África constituída por uma consciência ocidental do negro (MBEMBE, 2018, p. 61).

 

Essa escrita reverbera até a atualidade, como aponta Anderson Oliva, nos livros didáticos brasileiros, criando imagens negativas sobre os negros e sobre o continente africano, contribuindo com a discriminação para com as pessoas afrodescendentes em nosso país e no mundo (OLIVA, 2005, p. 93). Em contrapartida, houve uma resposta à primeira escrita, sendo chamada de segunda escrita e baseada em uma consciência negra do negro (MBEMBE, 2018, p. 65).

 

Junto a essa questão, pensando sobre a especificidade das mulheres negras, tivemos como base na disciplina a obra de Chimamanda Adichie, tratando sobre os estereótipos feministas e os padrões da sociedade que as mulheres precisam enfrentar (ADICHIE, 2015). Isto posto, pretendemos nesse trabalho analisar e refletir sobre a representação da mulher negra a partir de uma obra de Rosana Paulino, entendendo também sua trajetória no mundo da arte. Nesse sentido, o presente trabalho configura-se como uma reflexão teórica acerca das relações de gênero na atualidade, proporcionada por uma experiência no ensino universitário.

 

Diante da finalidade de pensarmos sobre a representação de mulheres negras a partir de obras de artistas negras, foi escolhida uma obra de Rosana Paulino, intitulada “Ama de leite número I” (figura abaixo), que faz parte de uma série de trabalhos sobre amas de leite. Apesar de ser uma representação contemporânea, remonta a um passado da história de nosso país, passado esse que não deve ser esquecido.


Fonte: Acervo pessoal de Rosana Paulino. Disponível em http://www.rosanapaulino.com.br/blog/faltavam-estas/

 

A obra é uma pequena estatueta em terracota, na cor preta, que consiste em uma silhueta de um corpo feminino, tendo apenas o tronco, sem outros membros como cabeça e braços. De cima para baixo, estão posicionados três pares de seios e abaixo deles há uma representação de pele irregular, que parece uma barriga cheia de estrias. De cada seio saem duas pontas de fitas de cetim coloridas e, na extremidade de cada fita, tem um pequeno boneco de plástico, representando pequenos bebês de cor de pele branca e cabelos de cores variadas.

 

O primeiro contato com essa obra aconteceu por meio da pré-ONHB, evento organizado pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), antecedendo a conhecida ONHB (Olimpíada Nacional em História do Brasil), no ano de 2020. A questão que trouxe a imagem tratava sobre maternidade e contrastava-a com um quadro do início do século XX, nele estava uma mulher branca amamentando um bebê em espaço público. Diante disso, logo foi possível relacionar a algumas discussões tratadas em disciplina da universidade sobre o Brasil Imperial. 

 

Acerca do período em questão, o autor Robson Silva (2016) trata em um artigo sobre as amas-de-leite na cidade de São Paulo no século XIX, afirmando como essa prática era comum e como essas mulheres eram as responsáveis por amamentar e criar as crianças brancas das famílias mais abastadas. Silva (2016, p. 305) também destaca que, as escravas obrigadas a esse serviço eram impedidas de terem filhos e, caso tivessem, não poderiam cuidar deles; além disso, eram fonte de renda para seus patrões, podendo ser alugadas para outras famílias.

 

Essa realidade, proveniente do período colonial, começou a ser questionada na segunda metade do século XIX, devido ao discurso médico-sanitarista que tratava sobre a má alimentação de crianças (SILVA, 2016, p. 310). Tal discurso influenciou, à época, alguns abolicionistas que traziam como motivo para a abolição da escravidão o fato de as pessoas negras estarem corrompendo os costumes da sociedade brasileira, podendo as amas-de-leite influenciarem as crianças brancas a se voltarem contra seus pais (RODRIGUES, 2009, p. 312). Assim, é preciso considerarmos ainda como esses discursos se reverberam na atualidade em forma de preconceitos vivenciados cotidianamente pela população negra, em especial em relação às mulheres negras que continuam sofrendo com a objetificação dos seus corpos de diferentes formas.

 

Tratando sobre a artista que confeccionou a obra, Rosana Paulino nasceu em 1967, na cidade de São Paulo, e faz questão de ressaltar em entrevista que é uma mulher negra e cresceu em um meio urbano periférico, inserida em uma família umbandista, coisas essas que se refletem em suas obras (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 150). Paulino é bacharela em Gravura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), título adquirido em 1995, em 1998 concluiu uma especialização em Gravura pela London Print Studio e, em 2011, obteve o título de Doutora em Artes Visuais pela ECA/USP. Sua formação é feita no mundo acadêmico, resultado também de suas escolhas por tratar de temas pouco ou nada discutidos no Brasil, o que a fez dedicar bastante tempo em pesquisas acadêmicas, tendo como resultado uma maior discussão de seu trabalho também nesse meio, sendo convidada para eventos em universidades e contribuindo também para abrir caminhos para outros artistas que vieram depois dela (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 158).

 

A obra escolhida de Paulino representa muito bem essa realidade da exploração do corpo feminino, em especial das mulheres negras. Comecemos pelo fato de o corpo representado ter três pares de seios, ao invés de apenas um; evidenciando uma animalização do corpo humano, sendo as mulheres negras no passado tratadas de forma semelhante ao tratamento de alguns mamíferos na atualidade. Já a parte inferior a esses seios, que seria mais ou menos a região da pélvis feminina, aparenta uma pele muito desgastada, explorada ao extremo ou mesmo infértil. A estatueta, em si mesma, traz à tona o quão público eram os corpos das mulheres negras, impedidas de constituírem uma família, mas responsáveis por cuidar dos futuros homens da nação.

 

Passando para as fitas de cetim, multicoloridas, com os bonequinhos amarrados em suas pontas, demonstram elos construídos entre crianças e amas-de-leite, que poderiam ser mais fortes do que a própria relação entre pais e filhos. É comum nas obras da artista o uso de costuras, nesse caso, os nós de fitas que unem as crianças aos seios do corpo negro, podendo esse nó ter a mesma relação apontada por Susana Guerra sobre sua costura, uma vez que a relação entre as amas e as crianças, tanto de ligamento quando desligamento, eram marcadas por violência (SHMC I – ROSANA PAULINO: LUZ E SOMBRA – TÓPICO 3, 2020).

 

Outro apontamento feito por Guerra é sobre os usos de luz e sombra feitos pela artista, trazendo em suas obras as pessoas negras fora dos lugares de sombra aos quais lhe foram colocados na história da arte, por vezes questionando esse lugar ou o evidenciando (SHMC I – ROSANA PAULINO: LUZ E SOMBRA – TÓPICO 3, 2020). Na obra em questão, o busto negro ocupa o lugar central da imagem e recebe o foco de luz e da câmera, ao contrário dos pequenos bonecos que aparecem até um pouco desfocados. Desse busto também emanam as fitas coloridas, de forma que a luz e as cores são colocadas como provenientes desse corpo negro. Outra estratégia também utilizada para criar uma hierarquia entre os elementos é a proporção existente entre eles, estando o busto negro em um tamanho muito maior do que os bonecos, apresentando a mulher negra como personagem principal da história que se quer retratar, levantando a discussão sobre tantos corpos femininos que foram usurpados ao longo da história brasileira.  

 

Se pensarmos no contexto pessoal ao qual a artista está inserida, podemos entender que sua obra é conhecida por tratar sobre o corpo feminino, principalmente o negro, abordando também questões étnicas e sociais. Sendo assim, Paulino faz questão de ressaltar que suas obras são resultado de suas inquietações internas, conduzidas sempre por um “nó na garganta” e, se os temas que a inquietam são ainda incipientes no Brasil, isso diz respeito ao espaço que as mulheres negras ocupam nas artes visuais, por esse motivo, é possível entender sua obra como inserida num momento em que está em ênfase o que Achille Mbembe (2018, p. 65) chama de consciência negra do negro, por ter um viés biográfico e político, fazendo parte de uma história diferente da cunhada pela ciência colonial.

 

Ainda relativo a suas escolhas enquanto artista, por partir de inquietações pessoais e entender que faz os trabalhos para si própria, ela não se interessa em encaixar-se em teorias externas, apesar de entender que produzir em um contexto de mulheres feministas é acolhedor e libertador. Isso a faz ressaltar também que não produz pensando em ser reconhecida pelo circuito artístico e ganhar reconhecimento no mercado, o que interessa é poder externar suas inquietações (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 153).

 

Tendo uma produção fruto de inquietações individuais e que tratam sobre temas sociais, étnicos e de gênero, ela entende que só teve alguns espaços alcançados por estar na USP, pois o mercado não lhe daria atenção e, como já mencionado, ela não se interessa por essas disputas. Paulino assinala que o preço pago por essas escolhas é não vender muito, mas não se arrepende, pois seria muito ruim viver uma vida sem fazer o que queria. Junto a esse preço que ela paga, existe o pouco reconhecimento no meio artístico; em entrevista dada em 2018, afirma que a primeira exposição com investimento e planejamentos que fez jus à sua carreira foi a “Atlântico Vermelho – Padrão dos Descobrimentos”, a qual foi feita fora do Brasil, na cidade de Lisboa, em Portugal (CARVALHO, TVARDOVSKAS, FUREGATTI, 2018, p. 158). Atualmente, a artista participa ativamente de diversas exposições, tendo obras em coleções públicas no Brasil, Chile e Estados Unidos.

 

A obra escolhida para este trabalho não é um ponto fora da curva das produções de Paulino e representa a inquietação sentida por essa artista negra. Em documentário produzido pela Netflix, é apontado o fato de as mulheres negras não terem suas demandas totalmente atendidas no movimento feminista ou no movimento negro (FEMINISTAS: O QUE ELAS ESTAVAM PENSANDO?, 2018). Nesse sentido, ela destaca sobre como a condição de mulher e negra infere nas oportunidades no campo das artes visuais, devido a dificuldade de acesso a boas escolas, as obrigações com a casa e filhos e, ainda, o enfrentamento do mercado masculino, branco e eurocêntrico (TEIXEIRA, 2019).

 

Desse modo, Paulino se configura como uma das artistas que poderiam fazer parte do conteúdo escolar descrito como “pálido” por Renata Santos, por representar um conjunto de valores desse período histórico (SANTOS, 2019, p. 349). Esses valores são compreendidos em sua obra que traz uma representação da mulher negra que, mesmo estando em condição de subjugação por tantos anos, é ressignificada pela artista mostrando sua grandiosidade e importância na formação do país.

 

Imergir na produção de Rosana Paulino foi uma experiência de grande valia para perceber as questões norteadoras da disciplina. Sua trajetória, despreocupada em ser bem recebida pelo mundo artístico e pelo mercado, tornou-a em uma artista livre que consegue expor suas inquietações para sociedade. Sua condição enquanto mulher e negra, junto dessa escolha de trajetória, dificultou a chegada de seu reconhecimento, porém ela conseguiu abrir os caminhos para as artistas mais jovens e está hoje em uma boa posição no cenário artístico, dada a quantidade de obras em exposição. 

 

Diante dessa discussão, é preciso considerarmos a importância de tratarmos sobre essa temática no contexto da formação universitária de licenciandos. Devemos ter em vista, ainda, a Lei 10.639/03, que, alterando a Lei 9.394/96, tornou obrigatório o ensino da História da África e da cultura afro-brasileira em todas as escolas de ensino básico do país. Assim, é obrigação das universidades adequarem os seus currículos para atenderem às necessidades do chão da escola, onde os futuros profissionais formados atuarão. Nesse sentido, essa experiência se mostrou como primordial por proporcionar a reflexão sobre o tratamento para com o corpo das mulheres negras em nosso país, contribuindo para pluralizarmos os conhecimentos acerca da nossa história.

 

Referências biográficas

 

Rebeca Nadine de Araújo Paiva, estudante da licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

 

Referências bibliográficas

 

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

BRASIL. Lei no 9.394, de 09 de janeiro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 08 dez. 2020. 

 

BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 08 dez. 2020. 

 

CARVALHO, Noel dos Santos; TVARDOVSKAS, Luana Saturnino; FUREGATTI, Sylvia Helena. A propósito da passagem de Rosana Paulino pela Unicamp – entrevista com a artista. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 26, n. 2, p. 149-160, jul./dez. 2018.

 

FEMINISTAS: o que elas estavam pensando? Direção: Johanna Demetrakas. [S. l.]: Netflix, 2018. 1 vídeo (86 min). Disponível em: https://www.netflix.com/title/80216844. Acesso em: 10 jul. 2020.

 

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

 

OLIVA, Anderson Ribeiro. Os africanos entre representações: viagens reveladoras, olhares imprecisos e a invenção da África no imaginário Ocidental. Em Tempo de Histórias, n. 9, p. 90-114, 2005.

 

PAULINO, Rosana. Ama de Leite número I. 2005. 1 fotografia. Disponível em: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbHBYUJ3sn_qL_-x5r5lYZ0UgaW0nnCvEVZIBqMPj-7JdzRQxigsRXHewP-XIWjam2GvYYFB-tLJkS6Guij96FU-LztK9uPPk3FGsJKUZbJDdFkN_Zqj2FD5UckeYAvWcFWG7rnl_oMOs/s1600/KIMBERLY+1.JPG. Acesso em: 4 jul. 2020.

 

RODRIGUES, Jaime. O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil: paradigmas em questão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 

 

SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos. A pálida história das artes visuais no Brasil: onde estamos negras e negros? Revista Gearte, v. 6, n. 2, p. 341-368, 2019.

 

SHMC I – Rosana Paulino: luz e sombra – tópico 3. Produção de Susana Guerra. [S. l.s. n.], 2020. 1 vídeo (19 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RPfRxgGlzrs&feature=youtu.be. Acesso em: 5 jul. 2020.

 

SILVA, Robson Roberto. A presença das amas-de-leite na amamentação das crianças brancas na cidade de São Paulo no século XIX. Antíteses, v. 9, n. 17, p. 297-322, jan./jun. 2016.

 

TEIXEIRA, Marina Dias. Ser artista negra: o olhar de Rosana Paulino sobre passado, presente e futuro. [S. l.]: SP-ARTE 365, 2019. Disponível em: https://www.sp-arte.com/editorial/ser-artista-negra-o-olhar-de-rosana-paulino-sobre-passado-presente-e-futuro/. Acesso em: 4 jul. 2020.

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