Luciana Codognoto da Silva

PSICOLOGIA E ERRÂNCIA FEMININA

  

Introdução

 

Nosso interesse pelo tema “mulheres, errâncias e nomadismos” surgiu a partir de nosso ingresso no Grupo de Pesquisa “Figuras e Modos de Subjetivação no Contemporâneo” (cadastrado no CNPq) e filiação a uma das linhas de pesquisa do Pós-Doutorado em Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Assis, voltada à investigação dos processos de subjetivação constituídos em torno das condições de mobilidade e dromologia femininas contemporâneas. 

 

Para Justo (2011), Nascimento (2012) e Freitas (2014), o que diferencia andarilhos e trecheiros seria justamente o grau de deambulação, ou seja, enquanto que os andarilhos buscam abrigos em pontos fixos ou em determinados lugares de rodovias e acostamentos de estradas e cidades, os trecheiros visam apenas lugares de passagem, sendo a cidade o local de parada para visitação ou para fins de ajuda para prosseguimento de sua viagem. Estas figurações dromológicas, metamórficas, nômades e plurais visam indagar e legitimar a ação destes sujeitos, sobretudo das mulheres na sociedade, tomando como prova histórica, cultural e política a decadência das identidades ditas estáveis e metafisicamente fixadas.

 

A partir dos estudos realizados sobre as mobilidades de andarilhos, trecheiros e população em situação de rua, o objetivo deste estudo é discutir as questões de gênero relacionadas à mobilidade, mediante relatos de experiências de mulheres que vivem em condição de perambulação de cidade em cidade, passando a abrigar-se, temporariamente, em um município de pequeno porte populacional, localizado no interior do Estado de Mato Grosso do Sul (MS). Buscaremos examinar, por meio da pesquisa qualitativa em Psicologia e a partir do método cartográfico, como as mulheres, denominadas pela literatura científica de trecheiras, vivem as diversas facetas da feminilidade em um espaço radicalmente oposto àquele ambiente de confinamento e de subalternidade, tradicionalmente reservado à mulher na nossa sociedade e cultura, a saber, o espaço domiciliar, vinculado ao trabalho doméstico, à função materna e de esposa subordinada ao marido.

 

Trajetividade e Errância Feminina: revisitando as pesquisas em Psicologia

 

Constatamos a inexistência de estudos, sobretudo da Psicologia, que retratam o modo de vida de mulheres trecheiras. Para Costa (2005), a negligência em relação às mulheres andarilhas ou trecheiras pode ser verificada pela extrema carência de pesquisas e falta de quaisquer dados sobre elas em censos demográficos ou outro tipo de levantamento de dados e estudos sobre população e pela ausência de políticas públicas de assistência social dirigidas, especificamente, para elas. Em nossos levantamentos bibliográficos preliminares, verificamos que os estudos realizados, até o presente momento, sobre trecheiros encontram-se vinculados às realidades locais do Estado de São Paulo, sendo problematizadas, com maior frequência, por universidades, como em (JUSTO, 1998; 2011; 2012; 2015), (NASCIMENTO; 2008; 2012) e (FREITAS, 2014). 

 

O que encontramos, no campo da assistência social, são projetos e iniciativas destinados a pessoas em situação de rua, cada vez mais crescentes no país, principalmente a partir do ano de 2004, quando se deu a implantação do Sistema Único da Assistência Social, criado pela Lei Orgânica da Assistência Social n° 8742 - LOAS, e que podem fazer alguma referência a trecheiros. 

 

Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua (BRASIL, 2008) apontam que esta população é composta majoritariamente por homens, uma média de 82%. Estes dados ainda sofrem interferência, quando percebemos que tal pesquisa, assim como tantas outras, considera apenas algumas cidades de grande porte como fonte de dados oficiais e estatísticos dessa população no país.

 

Quando recortamos, especificamente, andarilhos, trecheiros e questões de gênero, fica ainda mais evidente a inexistência de estudos e pesquisas – seja no âmbito acadêmico, seja no governamental – de mulheres trecheiras. No levantamento realizado, encontramos as pesquisas de Tiene (2004), intitulada “Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais”, de Alves (2013), intitulada “As moradas de rua entram em cena: a violência contra a mulher moradora de rua como uma das expressões da questão social” e de Rosa e Brêtas (2015), denominada “A Violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo”. Trata-se de duas pesquisas vinculadas ao curso de Serviço Social e uma, de Enfermagem, ligadas, restritamente, à população de rua feminina, e não à temática específica de mulheres vivendo no trecho, se deslocando de uma cidade à outra.

 

No âmbito da Psicologia, encontramos apenas uma pesquisa, referente à dissertação de mestrado de Verônica Bem dos Santos, intitulada “Mulheres em vivência de rua e a integralidade no cuidado em saúde”, defendida no ano de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Todas as pesquisas, antes mencionadas, estão voltadas à problematização exclusiva da violência e da saúde coletiva de mulheres que vivem em situação de rua, e não de trecheiras, centralizando suas análises em grandes centros urbanos, como as cidades de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE), e um munícipio que se constitui em um importante pólo universitário no Estado do Rio Grande do Sul (RS).

 

Observamos que existe uma quantidade expressiva de pesquisas sobre pessoas em situação de rua, poucas sobre andarilhos e trecheiros, concentradas no grupo de pesquisa da UNESP-Assis, porém, não localizamos, em nossos levantamentos, nenhuma pesquisa específica sobre trecheiras ou andarilhas conduzida na perspectiva dos estudos de gênero. Até mesmo as pesquisas com mulheres em situação de rua não privilegiam, com maior clareza, a questão específica do gênero e do trecho. 

 

A partir desses dados, consideramos complacente levar adiante as nossas pesquisas com mulheres trecheiras, publicando parte dos seus resultados em anais de eventos científicos e em publicações de dois artigos científicos em revistas bem conceituadas em Psicologia no Qualis/Capes, a saber, a Revista Psicologia & Sociedade (SILVA; JUSTO, 2020), ligada à Associação Brasileira de Psicologia Social, e a Revista Subjetividades (SILVA; JUSTO, 2020), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. 

 

Metodologia

 

Recorremos à abordagem qualitativa de pesquisa em Psicologia. Por meio da cartografia, realizamos entrevistas abertas com quatro mulheres trecheiras, que procuravam abrigo na Casa do Migrante de um município de pequeno porte populacional, localizado na região sudeste do Estado de Mato Grosso do Sul – MS. São mulheres com idades entre 18 e 59 anos, que buscavam abrigo temporário na Instituição mediante demanda própria. Em sua maioria, eram consideradas pessoas mais fechadas e de pouco diálogo e contato afetivo e interpessoal, se comparadas aos homens, que também passavam pela Instituição.

 

As entrevistas foram gravadas, transcritas e, posteriormente autorizadas pelas participantes, mediante a assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre Esclarecido – aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) de uma Universidade Pública do Estado de São Paulo. Elas foram realizadas nas dependências da Casa do Migrante do referido município, em uma sala reservada, tendo a duração de, aproximadamente, uma hora. Tivemos, como eixos disparadores, os seguintes pontos: perfil das participantes, momento de ruptura, acontecimentos e conflitos que deflagraram a deserção, vida no trecho e perspectivas de futuro. 

 

Por questões éticas, optamos em não revelar os nomes das participantes, bem como do município onde ocorreu esta pesquisa, destacando apenas a sua localização geográfica.

 

Resultados e Discussões

 

As experiências de nomadismo ou de errância, vividas por aqueles classificados como “pessoas em situação de rua”, “trecheiros”, “andarilhos” e outros transumanos distanciados da norma, recebem rotulações pelas quais seus atores são equivocadamente reconhecidos e tratados socialmente. Via de regra, são percebidos como “vagabundos, loucos, sujos, perigosos e coitadinhos” (JUSTO, 1998), ou ainda, como “pilantras, aproveitadores, coitados, sofredores e filhos desgarrados de Deus” (JUSTO, 2011).

 

Em Nascimento (2012) e Justo (2012), vemos que, mesmo em uma época de constantes movimentos e transformações, a errância se configura como um fenômeno complexo e multifacetado, no qual os andarilhos e trecheiros passam a serem vistos como um de seus exemplos mais radicais. Assim, “vagabundagem, doença mental, desvinculação familiar e opção de vida” (NASCIMENTO, 2008; 2012) e tantas outras denominações que: “[...] fugindo à racionalidade citadina moderna dominante, passam a ser vistos e tratados como enjeitados e indesejáveis, carregando consigo a marca indelével da discriminação do senso comum” (FREITAS, 2014, p. 19). 

 

Para Justo (2015), são muitas as condições que levam as pessoas em situação de nomadismo a desancorar de uma vida territorializada. A busca por um trabalho, o “fazer bicos”, a procura por serviços de assistência social para completar a viagem e a condição financeira estão entre as principais. Mas também, não podemos nos esquecer de três importantes aspectos: a busca por uma situação melhor de vida, a fuga dos problemas gerados por uma vida indesejada e o mais evidente – as relações interpessoais e afetivas, permeadas por formação ou não de vínculos e um possível compartilhamento de histórias de vida entre essas mulheres.

 

Constatamos que a precarização e a divisão sexual do trabalho, a segregação, o desemprego, a pobreza, a vivência de conflitos familiares, sobretudo a violência estrutural e de gênrero contribuíram para que nossas participantes optassem radicalmente pelos caminhos da errância, tal como apontam os estudos desenvolvidos por Justo (1998) e Nascimento (2008). Mas também, observamos que este caminho, muitas vezes, torna-se um ato de coragem, sobretudo de muitas mulheres, de abandonar os referencias hegemônicos de identidade feminina – como o casamento, a vida doméstica, a procriação e a docilidade – para viverem cotidianos transitórios, inesperados e improvisados, que rompem, drasticamente, com o modelo de mulher esperado, idealizado e normatizado pela sociedade.

 

Acreditamos que um evento isolado, por mais desgastante que seja, não é, por si só, o condicionante para a deserção, tal como apontam as pesquisas com andarilhos e trecheiros, de Justo (2011), quanto com mulheres em situação de rua, enfatizadas por Santos (2014) e Rosa e Brêtas (2015). Especificamente no caso das mulheres trecheiras, observamos que tanto as histórias de vida de Cristal quanto de Topázio foram marcadas por conflitos e divergências familiares importantes, vividos em especial com as mães.

 

Logo, faz-se necessário pensar em tais pressupostos a partir de uma perspectiva mais ampla, de forma a conceber não mais o termo mulher, mas mulheres no plural, haja vista que cada uma delas carrega em si as marcas das relações de poderes, pressupostos de saberes e também de resistências a dados modelos considerados, até então, inquestionáveis em grande parte das instituições regulatórias de produção e manutenção de certo modelo de sociedade, como é o caso das mulheres que vivem em condição de errância, as chamadas “mulheres trecheiras”.

 

Considerações Finais

 

Verificamos uma quantidade expressiva de estudos sobre pessoas em situação de rua e pouca sobre andarilhos e trecheiros, concentrada no grupo de pesquisa da UNESP-Assis, porém, não localizamos outras pesquisas sobre mulheres trecheiras ou andarilhas conduzidas na perspectiva dos estudos de gênero e Psicologia. Até mesmo as pesquisas com mulheres em situação de rua não privilegiam, com maior clareza, a questão específica do gênero e do trecho e os fatores que deflagraram o momento de deserção destas mulheres, as quais passaram a viver como trecheiras.

 

Dentre os motivos que deflagraram a derserção estão: a violência de gênero vivida, sobretudo na família, conflitos familiares, violência estrutural, decorrente do desemprego e de falta de oportunidades para estas mulheres se inserirem e permanecerem no mercado de trabalho, e o espírito de aventura, de lançar-se por caminhos desconhecidos, tal como a vida no trecho.

 

Acreditamos que essa pesquisa contribuirá com os estudos de gênero, focalizando um aspecto relevante dessa questão praticamente inexplorado: contribuir com subsídios para a formulação de políticas e assistências públicas voltadas às mulheres trecheiras, principalmente no âmbito da saúde e da assistência social, para a situação de mulheres em situação de rua, especialmente de trecheiras, deixando, assim, de privilegiar apenas os homens, incluindo em suas ações e problematizações as particularidades do feminino em um espaço historicamente ocupado e destinado aos homens – o lugar do nomadismo, da transição, da ebulição e do movimento.

 

Referências biográficas

 

Dra. Luciana Codognoto da Silva – Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPNA. Doutora em Psicologia e Pós-Doutorado em Psicologia – UNESP/Assis.

 

Referências bibliográficas

 

BRASIL. Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília, 2008, 16p.

 

______. LOAS Anotada. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília, 2009.

 

COSTA, Ana Paula Motta. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Revista Virtual Textos & Contextos, Porto Alegre, v.4, n.4, p. 01-25, dez. 2005.

 

FREITAS, Cledione Jacinto. “Os Indesejáveis”: agentes públicos e a gestão da mobilidade de trecheiros e pessoas em situação de rua. 2014. 189 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis – UNESP, Assis, 2014.

 

JUSTO, José Sterza. Errância e errantes: um estudo sobre andarilhos de estrada. In: SAGAWA, Roberto Y; JUSTO, José Sterza (Orgs.). Rumos do saber Psicológico. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 125-139.

 

JUSTO, José Sterza. Andarilhos e trecheiros: errância e nomadismo na contemporaneidade. Maringá: Eduem, 2011.

 

JUSTO, José Sterza. Vidas errantes: políticas de mobilidade e experiência do tempo-espaço. Londrina: Eduel, 2012.

 

JUSTO, José Sterza. Errância e errantes na sociedade contemporânea: estudos com andarilhos de estrada. IN: VI CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ, 6, 2015, Maringá. Anais do VI Congresso Internacional de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá: UEM, 2015, p. 01-06.

 

NASCIMENTO, Eurípedes Costa do. Nomadismos contemporâneos: um estudo sobre errantes trecheiros. São Paulo: Editora Unesp, 2008.

 

NASCIMENTO, Eurípedes Costa do. Errância e nomadismo: um estudo sobre a percepção de dirigentes e profissionais de instituições assistenciais em relação aos andarilhos de estrada. 2012. 197 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis – UNESP, Assis, 2012.

 

SANTOS, Verônica Bem dos. Mulheres em vivência de rua e a integralidade no cuidado em saúde. 2014. 110 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Santa Maria/RS, 2014.

 

SILVA, Luciana Codognoto. Errância e nomadismo feminino: o caso de duas mulheres trecheiras. Revista Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v.32, n.01, p. 01-14, jun.2020.

 

SILVA, Luciana Codognoto. Errância Queer e nomadismo feminino: trajetividades e resistências de mulheres no trecho. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 20, n.02, p. 01-12, jan-jun.2020.

 

TIENE, Izalene. Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais. Campinas: Alínea, 2004

4 comentários:

  1. Olá, parabéns pela iniciativa dos estudos sobre a questão tão escassa. Gostaria de perguntar quais mudanças podem ser notadas na vida de mulheres andarilhas ou trecheiras em relação a pandemia do coronavírus?

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    1. Obrigada pela pergunta! Esta pesquisa foi realizada antes da pandemia. Infelizmente, não dispomos de dados para uma nova pesquisa nesse momento de pandemia. A ideia é iniciarmos o levantamento de dados assim que possível.

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  2. Boa noite, professora Luciana!
    Parabéns pelo texto, um assunto que quase não ouvimos falar.
    Em sua opinião quais atitudes devem ser tomadas para a redução dessas mulheres trecheiras e de quem deve partir tais? E em plena pandemia como deve estar sendo a rotina delas?

    Larissa Roberta Castro Borges

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  3. Obrigada pela pergunta! Conforme eu disse anteriormente, essa pesquisa foi realizada antes do período da pandemia. A intenção é voltarmos a esse tema estabelecendo um paralelo com o momento de pandemia, assim que possível. Quanto a possível redução do número, precisamos entender quais motivos levam essas mulheres a partirem para o trecho: violências, sobretudo de gênero (mais presente no contexto familiar); violência estrutural, uso de substâncias psicotrópicas. Desenvolvermos políticas públicas que visem o combate desses elementos e melhor preparação do Estado para o acolhimento humano dessa população.

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